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quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Restos de Nada

Para você entender a importância do Restos de Nada, saiba que a história da banda e de seus integrantes se confunde com a história do nascimento do punk no Brasil em 1978 e com a explosão desta manifestação cultural em 1982.
Com o arrocho salarial e o "milagre econômico" entre 1969-73 houve um ingresso cavalar de jovens no mercado de trabalho, neste período 70% dos trabalhadores entre 14 e 24 anos estavam empregados no perímetro urbano. No final da década de 70 a coisa já era diferente. O Brasil estava em situação economicamente delicada, a inflação ultrapassara os 100%, mais de um milhão de desempregados só na cidade de São Paulo. O perfil do jovem urbano brasileiro mudou de uma hora para outra. Eram jovens que perderam o acesso à diversão e ao consumo. Garotos raivosos que buscavam informação e sentiam-se excluídos, marginalizados. Em outras palavras, eram punks.
Um desses garotos se chamava Clemente Tadeu Nascimento. Em 76 Clemente tinha 13 anos e morava na Vila Carolina, zona norte de S.P. Sua preocupação era beber, conversar nas esquinas, organizar festas e tentar montar uma gangue de verdade. Clemente, ao lado do amigo Douglas - cujo cunhado comprava discos importados em Santos em contrabandos que traziam pelo oceano Atlântico as novidades da Europa - eram fãs de MC5, New York Dolls e Stooges e eram os responsáveis por levar à garotada, as boas novas daquele som tosco, sujo e agressivo. Porém o principal aglutinador da gangue da Vila Carolina não era a música nem a ideologia punk. Eram apenas amigos de bairro entre 13 e 17 anos que brigavam à menor cara feia de alguma gangue rival, bebiam e fumavam juntos. A música protopunk era apena a trilha sonora e o filme predileto se chamava Laranja Mecânica.

O povo da Vila Carolina só foi descobrir que existia um movimento punk em 1977, lendo reportagens nas revistas Pop e Manchete, sobre as "algazarras dos Sex Pistols" ou em clichês infelizes como "Como furar seu nariz", "Aprenda a rasgar a roupa", "Como ser punk" sob o título: "A moda barra-pesada invade Londres". Clemente, Douglas e companhia não se empolgaram com a moda inglesa e achavam que aquilo era "coisa de veado". Em agosto a própria redação da revista Pop organizou com a Philips o lançamento do disco "A revista Pop apresenta o punk rock". E que disco !!! A coletânea trazia Sex Pistols (com God Save the Queen e Pretty Vacant), Ramones (com Loudmouth e Now I Wanna Sniff Some Glue), The Jam (In The City e Slow Down), Eddie & The Hotrods (Writing On The Wall e I Might Be Lying), mais London, Ultravox, Stinky Toys e Runaways, com uma faixa cada. Ironicamente, uma revista que falava aos adolescentes setentistas classe-média, surfistas e playboys, acabou servindo como uma referência para o povo da periferia.
"A gente tinha gostado bastante das músicas do disco da revista Pop, mas achava que esse negócio de punk era uma modinha qualquer. Eu estava na casa do primeiro baterista dos Inocentes e o irmão dele mais velho perguntou se a gente não ouvia punk rock, porque a gente era meio revoltado, daí ele colocou o primeiro disco do Generation X e traduziu a letra de Your Generation para mim e percebi que aquilo tratava das mesmas coisas que acreditava e começamos a se inteirar sobre o punk". Clemente.

Em 1978 as várias gangues da Vila Carolina foram se fundindo numa só, a Carolina Punk. Clemente comprou o seu primeiro disco punk, "Young, Loud & Snotty" dos Dead Boys na loja Wop Bop nas Grandes Galerias, comprou um baixo e com o velho parceiro Douglas, montou seu próprio grupo e o batizou de Restos de Nada, a primeira banda punk de São Paulo.
A maior diversão passou a ser ensaiar e tocar ao vivo, mas todos trabalhavam para sustentar o grupo (Clemente e Douglas eram office-boys, o vocalista Ariel era mecânico e o baterista Charles lecionava música). Na Wop Bop faziam amizades com outros simpatizantes do punk como o balconista Walson (popular Sid, que quase simultaneamente criara seu grupo, o AI-5) e Antônio Carlos Sinefonte, um funcionário da editora Continental. Sinefonte era mais velho que a maioria dos punks, conheceu o gênero na loja com o compacto God Save The Queen dos Sex Pistols. "Mas não me soou como uma ruptura, eu absorvi naturalmente. Conhecia T-Rex, New York Dolls, Patty Smith desde o começo dos anos 70. Já imaginava que alguma merda iria acontecer", conta referindo-se à revolução punk. Sinefonte tocou guitarra por apenas dois meses no AI-5 de Walson. A banda era totalmente punk, desde o visual até o som tosco e irônico, como na música John Travolta (Eu não agüento mais ouvir falar em John Travolta nem Olivia Newton John/ Eu não suporto mais ouvir falar nem dos Bee Gees nem na roqueira Rita Lee"). Eram moleques falando para moleques, pregando a ruptura que os artista profissionais não tinham coragem de pregar.
No início de 79, Sinefonte e seus colegas punks começaram a produzir os primeiros shows do Restos de Nada e do AI-5, na periferia da zona leste e da zona norte. Assim, desde o início o punk ficou associado ao movimento das gangues de subúrbio, afinal, a imagem de violência propagandeada pela mídia pareceu uma evolução lógica para aquele universo gregário e machista.

Ao longo de 1979, com a abertura política e a iminência do pluripartidarismo, Ariel e Douglas se filiaram à Convergência Socialista e colocaram as novas composições do Restos de Nada a serviço da militância comunista. Clemente ía nas reuniões, fumava um baseado, bebia e achava tudo muito chato. O que ele queria era agitação, sair nas ruas, brigar. Clemente resolveu entrar para outra banda, a NAI (Nós Acorrentados do Inferno), liderada pelo guitarrista Calegari e com o popular Indião nos vocais; e já chegou sugerindo a mudança de nome para Condutores de Cadáver. Enquanto que os Restos de Nada estava preocupado com a revolução, o Condutores de Cadáver agitava o movimento organizando shows e festas. Em dezembro de 79, o ex-baixista da NAI, Helinho reapareceu junto de dois amigos, irmãos. Os visitantes diziam ter formado uma nova banda, ensaiando em um par de violões e um sofá que fazia as vezes de bateria. Helinho pediu para abrir o show que os Condutores fariam na semana seguinte num colégio no bairro do Limão. Pediu ainda para que o trio pudesse ensaiar, ao menos uma vez, com instrumentos de verdade. Assim foi a primeira experiência desta nova banda chamada Cólera, com a energia elétrica, tenda na formação Helinho (guitarra), e os irmãos Pierre (bateria) e Redson (baixo e vocal). Redson vinha do Capão Redondo, vizinhança barra-pesada da zona sul e era completamente diferente do perfil punk reinante. Tinha aversão a brigas de gangues e à violência de todo tipo, devorava livros sobre Yoga e era fã de Lobsang Rampa e de Ignácio de Loyola Brandão. Redson, ao formar o Cólera fez questão de peitar a violência que imperava - "Éramos vistos como arrogantes, folgados, porque chegávamos aos shows sem gangue, só nos três, de mochila nas costas, carregando nossos instrumentos. Não entendiam que íamos para tocar e não para brigar".
Naquela altura, Sinefonte conseguiu fazer um teste para a rádio Excelsior FM, e foi aprovado. Resolveu bolar um pseudônimo para apresentar um programa semanal (às segundas, das 22 à meia noite), especializado em punk e new wave. Simplesmente roubou o nome do DJ dos Blockheads: Cosmo Vinyl. Conseguiram convencê-lo a adaptar o prenome "KID" (também inspirado em outro DJ inglês, Kid Jansen), e aí, em novembro de 1979, entrou no ar uma das personagens mais folclóricas da cena paulista: Kid Vinil. Kid montara a sua própria banda, a Verminose, um punk-a-billy bem humorado.
Os shows passaram a ser divulgados no programa do Kid Vinil e mais bandas foram surgindo, como Juízo Final, Lixomania, Fogo Cruzado, M-19, Psykóze. Douglas e Ariel (ex Restos de Nada e futuro Invasores de Cérebro) montaram o grupo Desequilíbrio. Redson começou a organizar coletâneas em fitas cassete com ensaios dos grupos. Surgiu o primeiro zine, o Factor Zero, editado pelo Strombus do Anarkólatras, que abriu caminho para outros como o SP Punk, de Calegari e o Vix Punk de Redson.

No carnaval de 1980, a rapaziada lançou o apelo; "Torne este carnaval sem efeito ouvindo punk rock". Alugaram um salão e organizaram o mini festival com as bandas Cólera, Condutores de Cadáver, uma banda de heavy metal chamada Vermes e outra de rock honesto, a Cetro. Foi lá que João Francisco Benedam assistiu seu primeiro show punk, anos depois se tornaria vocalista de um grupo que ainda nem surgira, os Ratos de Porão. Várias gangues se encontraram e nenhuma briga foi detonada, a música e a movimentação vinda do subúrbio não poderia ser prejudicada por infantilidades.
A Wop Bop mudou de endereço e virou o templo do tecnopop, do new romantic e do pós-punk. Uma loja de discos segmentada foi inaugurada na galeria: a Punk Rock Discos, ponto que passou a aglutinar os punks da cidade. Mais tarde o dono desta loja, Fábio Sampaio, formou seu próprio grupo, o Olho Seco, com integrantes do Cólera. Além de apresentar o punk europeu e americano para os brasileiros, Fábio começou a se corresponder com integrantes destas bandas e fez contatos valiosos promovendo um intercâmbio violento.
Além de espetáculos em casas da zona norte como o Construção na Vila Mazei, os punks se encontravam na praça da estação São Bento do metrô, onde a prefeitura organizava shows gratuitos e a molecada passava horas conversando e cheirando cola. No começo de 81, um show apenas com bandas punks no teatro da PUC reuniu 600 pessoas !! Foi o último show do Condutores de Cadáver. Clemente insatisfeito com os rumos hardcore aproveitou para sair. Levando Calegari, montou os Inocentes cuja formação era: Clemente no baixo, Mauricinho no vocal, Marcelino na bateria e Calegari na guitarra.

Com o fim do Condutores, Indião se engraçou com uma cobiçadíssima punk de Santo André, e passou a fazer "tráfico" de fitas cassete com bandas até então inauditas na região. Aproveitou e montou um grupo intermunicipal, o Hino Mortal, que logo se estabeleceu como um dos maiores do punk paulista. O surgimento do punk coincidiu com o auge dos movimentos sindicalistas, concentrados na região do ABC, o que deu forte conotação social ao movimento: os punks do ABC se julgavam "engajados" e tratavam os da capital por boys. Os punks de São Paulo julgavam os vizinhos uns trogloditas e desinformados. Quando Clemente começou a namorar uma garota de São Bernardo a coisa piorou. Como eram quase todos metalúrgicos, os punks do ABC adotaram na indumentária as botas com biqueiras de aço que usavam nas fábricas, o que os colocavam em temível vantagem nas brigas. No ABC o movimento punk também surgira de gangues. A primeira banda foi a Passeatas, nascida no início de 1980 no meio da gangue Os Anjos, com fama de violentíssima. Logo após surgiram outros grupos como Garotos Podres e Ulster.
Os punks da capital tiveram a idéia de montar um festival itinerante, levando o movimento para todos os bairros da periferia. Batizaram o evento de Grito Suburbano. O primeiro Grito ocorreu em agosto de 81 com Anarkólatras, Lixomania, Olho Seco, Cólera e Mack (estes últimos cantavam em inglês, eram vistos com desdém e desconfiança pela rapaziada). Logo em seguida, conseguiram um horário fixo, semanal, no Teatro Luso-Brasileiro, durante as tardes de domingo. Mas a violência ainda predominava. No segundo semestre de 81, o jornal O Estado de S. Paulo publicou uma série de reportagens chamada "Geração abandonada".

Indignado e avacalhando com o jornalismo-inverdade, Clemente enviou uma carta à redação do jornal lembrando todo o lado cultural da coisa. Graças à polêmica, alguns videomakers da produtora Olhar Eletrônico procuraram os frequentadores da loja Punk Rock para produzir um documentário. O filme estreou no MASP e foi premiado em vários festivais no mundo todo. Este documentário chamado de Garotos do Subúrbio, foi o primeiro filme de Fernando Meirelles, diretor do cultuado e atual Cidade de Deus.
"Garotos do Subúrbio foi a minha primeira produção! Estava ainda na faculdade de arquitetura da USP quando, em 1982, decidi fazer um documentário sobre o movimento punk que nascia em São Paulo. Eu havia cruzado com aqueles garotos numa galeria do centro. Todo documentário deve responder a uma pergunta e a minha era: o que fazem garotos do subúrbio de S.P. se identificar com um movimento inglês? Casacos de couro preto no sol do Anhangabaú? Cara de mau num país tão relaxado? O filme começa mostrando toda a ira do movimento punk, mas aos poucos vai revelando que, embaixo da casca, há apenas um grupo de amigos buscando uma forma de identidade para afirmar sua existência. Há algo em comum entre Garotos e Cidade de Deus. Nos dois é revelado o ser humano que há por trás da fachada de um traficante ou de um punk de verdade".

A rebelião punk de São Paulo não foi uma cópia do punk de fora, mas uma identificação adaptada à realidade local. Nesses primeiros anos, quando o punk foi alardeado por uma série de reportagens sensacionalistas, o ibope foi às alturas e o movimento fisgou mais adeptos entre a garotada. Mas a distorção das notícias sobre a onda inicial causou uma confusão que fez crer que todo mundo era marginal. Mesmo que você não fosse o delinquente juvenil alardeado pela mídia, mas identificado com o lado mais racional do punk, tinha que tomar uma atitude de agressão para se afirmar. Tinha que vestir o uniforme.
A verdade era que os punks mais radicais e ignorantes não admitiam colaborar com a grande imprensa. Quando Kid Vinil deu uma entrevista à revista Veja, dezenas de revoltados fundamentalistas arrasaram um show do Verminose. Kid encerrou seu antigo programa. Sua banda Verminose foi rebatizada de Magazine, para afugentar as sombras da punkadaria.
Mas o movimento não tinha como parar de crescer. No final de 81, Fábio Sampaio resolveu produzir um disco pelo selo de sua loja. Alugou um estúdio de oito canais de música sertaneja, o Gravodisc, e enfiou Cólera, Inocentes, M-19, Anarkólatras e Olho Seco para gravar. Tudo foi registrado ao vivo, em dois períodos de seis horas. As dificuldades eram muitas, ninguém tinha experiência em gravar rock na época. Não haviam produtores e os técnicos não tinham idéia de como chegar ao som pretendido pelas bandas, aliás, nem elas. A primeira gravação ficou tão ruim que todos tiveram que retornar ao esúdio, no início de 82, para refazer tudo. Anarkólatras e M-19 tiveram problemas quando foram regravar e ficaram de fora do disco. Grito Suburbano saiu alguns meses depois, no início de 82, com tiragem de mil cópias. Com 6 músicas de cada, Olho Seco, Inocentes e Cólera foram as primeiras bandas a registrar seu trabalho em vinil. É claro, que se comparado aos dias de hoje, o Grito Suburbano não passaria de uma demo tape mal gravada, mas o Grito é muito mais do que apenas um disco, é o primeiro registro sonoro de uma época que continua pairando no ar até hoje. Com menos repercussão, em setembro é lançado o segundo vinil punk: um compacto com 6 músicas do Lixomania.

Enquanto a Olhar Eletrônico produzia seu documentário, outro leitor da carta de Clemente ao Estadão desenvolvia seu trabalho com os punks. Era o teatrólogo Antônio Bivar, que estava escrevendo um volume da coleção Primeiros Passos, da Editora Brasiliense, intitulado O que é punk. Bivar voltara de Londres, onde presenciou o nascimento da segunda geração do punk rock, liderada por bandas como Exploited, Discharge, G.B.H. e Varukers. Essa turma de discurso político afiado e som ainda mais cru e pesado que o dos Sex Pistols, guardava laços diretos com a rapaziada da periferia paulista. Bivar se apaixonou pela movimentação dos garotos do subúrbio e abriu muitas portas para a molecada ainda inexperiente. Bivar começou fazer o punk aparecer. A edição de agosto de 82 da revista Gallery Around, na qual Bivar era editor, publicou mais um texto de Clemente, um dos mais importantes, românticos e ingênuos textos da história da música pop nacional.
"...nós estamos aqui para revolucionar a música popular brasileira, para dizer a verdade sem disfarces: para pintar de negro a asa branca, atrasar o trem das onze, pisar sobre as flores de Geraldo Vandré e fazer da Amélia uma mulher qualquer".
Após implantada a metodologia de divulgação de Bivar, o que era movimentação local foi descoberto por todo o Brasil. Os shows se multiplicavam, até no interior paulista. Inocentes, Estado de Coma e Suburbanos tocaram em Campinas. O negócio deu certo. Logo depois, novo show, dessa vez com Inocentes (com novo vocalista, o velho colega Ariel ex-Restos de Nada), Fogo Cruzado e Ratos de Porão. Ainda engatinhando nesta época, os Ratos de Porão se tornariam uma das mais tradicionais formações do punk brasileiro. Formaram o grupo no final de 81 na Vila Piauí. Com Jão (guitarra), Betinho (bateria), Chiquinho (voz) e Jabá (baixo). No início de 82 gravaram sua primeira demo. Temas rápidos e rasteiros, influenciados pelo hardcore americano, como Brasil Comunista e Novo Vietnã. Chiquinho deixa o grupo e Jão acumula a função de guitarrista e vocalista. A formação só se estabilizaria um ano depois, quando um fã, João Francisco Benedam, assumiu os vocais e adotou a alcunha de João Gordo.

Bivar e Calegari convenceram todo mundo a organizar um grande festival punk multimídia, com 10 bandas da capital e 10 do ABC. Exposições de fotografias, mostra de fanzines, exibição de documentários. A Punk Rock manteria um estante para vendas de discos e Bivar faria o lançamento do livro O que é Punk. As datas foram agendadas no Sesc Pompéia, zona oeste, para 27 e 28 de novembro. Um evento gratuito, com o Sesc financiando o equipamento de som e a gravação em fita cassete dos shows. O festival foi apelidado carinhosamente de O Começo do Fim do Mundo. Surpreendentemente, mais de 3 mil garotos do subúrbio deram as caras no Sesc Pompéia, com suas jaquetas de couro fajuto, coturnos e cabelos espetados com sabão. Punks de toda a grande São Paulo e interior. Todas as bandas convidadas toparam em tocar de graça. O pagamento seria uma faixa no LP ao vivo, o mais tosco possível, gravado em dois canais. Ótimo. Quinze minutos de fama para cada uma: Dose Brutal, M-19, Neuróticos, Inocentes, Psykóze, Fogo Cruzado, Juízo Final, Desertores, Ulster e Cólera no sábado. Suburbanos, Passeatas, Olho Seco, Decadência Social, Extermínio, Ratos de Porão, Hino Mortal, Estado de Coma, Lixomania e Negligentes no domingo. No primeiro dia tudo ocorreu sem problemas. No domingo, vieram duas gangues super-rivais, a Carecas do Subúrbio e a Punk da Morte, que deixou o clima relativamente tenso. Esboçaram uma briga, logo apartada. Um carro da Tv Globo tentou entrar com equipamento para noticiar o festival e quase foi tombado. A multidão de visual ameaçador e a vizinhança assustada. Duas viaturas da polícia foram averiguar o evento. Os punks entraram no Sesc e fecharam os portões. Lá de dentro, provocavam os policiais, até que no meio do show do Ratos, a tropa de choque da PM invadiu o local com seus cassetetes e escudos e o caos se instalou. Correria, confusão, brigas simultâneas e borrachada nos adolescentes. 25 jovens foram presos e a festa acabou alí mesmo.
Era o fim do primeiro festival punk de São Paulo e do movimento punk organizado. Logo depois, as brigas entre gangues se intensificaram, e as primeiras mortes foram registradas; muitas bandas, desanimadas, encerraram atividades sem nenhum registro fonográfico decente. Os shows foram rareando e as oportunidades sumindo. A polícia apertando o cerco e prendendo todo moicano que cruzasse seu caminho - a PM chegou a colocar uma guarita na estação São Bento do metrô. Os lojistas das Grandes Galerias organizaram um abaixo-assinado para pedir o fechamento da Punk Rock, que reabriu tempos depois na rua Augusta. Duas coletâneas representativas ainda foram lançadas: a SUB (produzida por Redson no início de 82, com Ratos, Cólera, Psykóze e Fogo Cruzado, mas só lançada um ano depois) e o registro ao vivo do festival, no disco O começo do fim do mundo. Contudo, nada mais seria como antes.
"Fiquei puto, desiludido. Vim de uma gangue, era questão de sobrevivência na periferia. Mas o lado artístico do punk era mais importante para mim. A gente curtia moda punk, fotografia, filmes, dadaísmo, poesia beat, tudo o que tivesse a ver com essa estética. Eu queria dar continuidade a isso, por causa das pessoas que faziam parte do movimento que, pela primeira vez, tinham uma identidade, uma voz. Era muito importante que o movimento crescesse e pudesse dar oportunidade para aquele jovem oprimido se expressar. Mas isso se tornava difícil quando os próprios punks estavam mais preocupados em brigar do que em batalhar pelo movimento". desabafava Clemente.
Lógico que o próprio modo como que o punk foi divulgado atrapalhou a compreensão exata de sua dimensão. Porém o mais importante para eles, foi fazer parte dessa geração que buscava um jeito de extravasar o que nem a repressão podia calar. Se não fosse o punk, seria outra coisa porque eles precisavam botar tudo aquilo para fora.

Além de São Paulo, algumas capitais esboçaram timidamente seus movimentos locais. Salvador com o Camisa de Vênus. Rio de Janeiro com os skatistas do Coquetel Molotov. Porto Alegre com os Replicantes. Curitiba com o Carne Podre e a Contrabanda (que mais adiante, daria origem ao Beijo AA Força). Brasília merece um capítulo a parte por causa de suas principais personagens, com destaque para as bandas Blitx 64, Plebe Rude e Aborto Elétrico (que deu origem a grupos como Legião Urbana e Capital Inicial). Mas comparado ao paulista - numeroso, influente, polêmico e violento - o mitológico movimento punk de Brasília parece um dia no parque de diversões: você entra para sentir emoções fortes, mas sabe que nada de perigoso pode lhe acontecer.
Em Brasília, o punk era questão de afirmação juvenil. No Rio, era rixa entre skatistas, em São Paulo era questão de sobrevivência. Em todos os lugares, de qualquer forma, era sempre uma prova da reação jovem às fórmulas caducas do pop brasileiro. Todos tinham aprendido a lição mais importante: não dependa de ninguém, não espere as bençãos de padrinhos. Fale a linguagem das ruas, das coisas que o cercam. Subverta o estabelecido, seja original. Faça você mesmo.

No início de 1983, o Fantástico, após meses de tentativas frustradas, conseguiu fazer a sua tão almejada matéria sobre o movimento punk de São Paulo. Pagaram cerveja a um grupo de moleques na estação São Bento, entrevistaram psicólogos que desdenhavam da rebeldia adolescente e transeuntes horrorizados com o visual dos jovens. Em quinze minutos, destruíram um trabalho de anos. No dia seguinte a maior parte dos punks se viu demitida de seus empregos. Foi a pá de cal sobre um movimento agonizante. Redson ainda montou sua própria gravadora, a Ataque Frontal, organizou a coletânea SUB e lançou o primeiro disco do Cólera em 85. Sempre fiéis às origens incluíram a Declaração Universal dos Direitos Humanos no encarte do LP Pela Paz em 86. Fábio Sampaio abriu uma nova loja e um novo selo, a New Face Records, que lançou vários discos de importantes bandas européias e o primeiro disco individual de uma banda punk latino-americana, o antológico Crucificados pelo Sistema do Ratos de Porão de 1983. Fugindo da estigma punk, os Ratos de Porão se aproximaram do trash e do metal, enquanto que a maioria dos egressos do punk de 82 se adaptavam aos novos tempos através do pós-punk inglês. O Lixomania se metamorfoseou no 365, Calegari formou o Disciplina. Muitas outras bandas boas simplesmente acabaram. Poucas íam surgindo e se destacando nacionalmente. As bandas mais populares no meio dos anos 80 eram os Garotos Podres e os Inocentes.
Os Inocentes da primeira (ou segunda??) fase ainda reuniram material para um Lp em 1983. De 13 canções, nove foram censuradas, e somente 4 viram a luz do dia, num EP raríssimo intitulado "Miséria e Fome", o qual anos mais tarde foi lançado na sua versão original em um LP com as 13 faixas. Em idas e vindas, Clemente (agora guitarrista) juntamente com Ronaldo e Tonhão (ambos ex-Neuróticos), reformulou os Inocentes incorporando elementos do pós-punk. Quando estavam quase desistindo de viver de música, Branco Mello dos Titãs (com crédito suficiente devido ao estouro de Cabeça Dinossauro) levou os Inocentes para a WEA, que lançou o mini-lp Pânico em S.P. em junho de 86.
Assim como boa parte das primeiras bandas punks brasileiras, o Restos de Nada acabou sem fazer um registro fonográfico decente. Até que em 1987 voltaram com a formação original apenas para gravar um LP com 12 músicas que foram compostas entre 1978/1980. Músicas desconhecidas de boa parte dos amantes do punk nacional. Preciosidades como Desequilíbrio, Somos todos escravos de um balde de lixo e Restos de nada.
Notas do autor: Este texto foi escrito baseado em várias entrevistas do Clemente, em vários recortes de jornais e revistas, no livro O que é Punk e principalmente no livro Dias de Luta. Muitas frases deste texto foram simplesmente copiadas do capítulo intitulado PUNK deste belo livro de Ricardo Alexandre.
A trilha sonora para a confecção deste texto foi: Restos de Nada, Grito Suburbano e Feijoada Acidente ? Brasil (disco obrigatório dos Ratos de Porão com versões para músicas de bandas como AI5, Hino Mortal, Inocentes, Restos de Nada, Garotos Podres, Psykóze, Anarkólatras, Olho Seco, Fogo Cruzado, etc etc etc...).
"Se tudo está errado por aí, e nós estamos convencidos disso, uma postura punk para nos salvar do abismo tem razão de ser. A receita é ingênua mas faz sentido. Os garotos dizem as coisas com franqueza selvagem. A arte deles explica-se pelas circunstâncias". Carlos Drummond de Andrade - Jornal do Brasil 1982.




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